Cobra Kai (Temporada 6, sequência final). O declínio do orientalismo romântico?
- Guilherme Amaral Luz
- 16 de fev.
- 8 min de leitura
Atualizado: 8 de mai.
Guilherme Amaral Luz (EDUCAM/INHIS/UFU)
Alerta máximo de spoiler! Se você começou a ler este texto, fique sabendo, a cena final da última temporada de Cobra Kai (Netflix, 2025) faz referência a um dos momentos mais icônicos de Karatê Kid: a hora da verdade (Columbia Pictures, 1984), quando Daniel Larusso (Ralph Macchio) encontra o seu mestre Miyagi (Pat Morita) tentando capturar uma mosca com um par de hashi. Na ocasião, o mestre diz a Daniel que aquele que consegue pegar uma mosca com hashi é capaz de fazer qualquer coisa. O jovem então se engaja na tentativa e, para a sua surpresa e de Myiagi, pinça o inseto logo nas primeiras tentativas, a que Miyagi reage dizendo: "sorte de principiante".
Na cena de Cobra Kai, cerca de 40 anos depois, Daniel encontra-se em um restaurante japonês com o seu (agora) amigo Johnny Lawrence (William Zabka). Enquanto Johnny vai ao lavatório, Daniel vê uma mosca rondando a mesa e lembra-se daquela situação com o seu mestre. Ele logo pega o par de hashi e se coloca novamente na caça ao inseto. Após alguns segundos, Johnny retorna e, ao perceber a mosca, a esmaga rapidamente com as duas palmas, dizendo ao final o velho bordão dos Cobra Kai: no mercy (sem compaixão).

A cena é uma excelente síntese da sequência final da 6ª e última temporada de Cobra Kai. A sequência anterior, como abordamos em outra postagem, deixou muito a desejar. Porém, o desfecho nesta sequência final foi, de muitas maneiras, surpreendente (com algumas inconsistências que não vêm ao caso, é verdade): de novo, como nas primeiras temporadas da série, por trás do entretenimento de superfície, é possível ler uma segunda narrativa que testemunha bem alguns dos dilemas da cultura marcial asiática em seu processo de globalização na contemporaneidade.
Desta vez, o que temos como possibilidade de reflexão é o próprio sentido da assimilação da marcialidade asiática (japonesa e outras) no "ocidente" contemporâneo (particularmente nos EUA, mas também, por extensão e irradfiação, em todo o "mundo globalizado"), permitindo-nos comparar o estado da questão no momento atual e aquele de 40 anos atrás. As cenas da mosca é um dos pontos altos dessa narrativa e desse testemunho.
No início dos anos 80, a contracultura das duas décadas anteriores e a espiritualidade New Age, a ela historicamente relacionada, ganhavam apelo comercial e midiático no main stream. Junto a isso, o orientalismo romântico, como uma de suas expressões, serviu de linguagem para diversas produções culturais e fílmicas, das quais Katratê Kid não deixa de ser um exemplar, no caso, mais voltado ao público infanto-juvenil. Karatê Kid, com o seu orientalismo romântico, inspirou-se no universo dos praticantes de artes marciais asiáticas (sobretudo, coreanas e japonesas) do período (inclusive de seu roterista, Robert Mark Kamen, cuja biografia informa bastante a história do filme). Por outra via, ele também fomentou em muitos jovens do período o desejo de ingressar no universo marcial.
A mensagem de Kamen era fácil de compreender e bastante clara: o Karatê (como as artes marciais asiáticas, de modo geral) não deviam servir à cultura de violência do individualismo americano mais "tóxico", fundado no militarismo típico da linguagem da Guerra Fria. Ao contrário, deveria buscar, nas tradições do "oriente", como no Karatê Goju Ryu, de Chojun Miyagi (no qual se inspira a figura do Mr. Miyagi do filme original), um antídoto ético e "espiritual" para um mundo cansado de guerras. A trilogia de Karatê Kid (e, de certo modo, também o quarto filme, já sem a participação de Ralph Macchio) é cheio de referências à "sabedoria" do "oriente", cuja metonímia torna-se especialmente a arte do Bonsai. Karatê Kid III: o desafio final (Columbia Pictures, 1989), por exemplo, faz da saga de resgate de um precioso Bonsai ocasião para que Daniel "San" aprenda lições importantes da ética marcial inspiradas no Taoísmo e no Budismo (com claras referências da linhagem "Terra Pura", a mais popular no Japão), às quais se contrapõe o comportamento do grande vilão do universo de Karatê Kid: Terry Silver (Thomas Ian Griffith Jr.), milionário amigo e mecenas de John Kreese (Martin Kove), o "sensei malvado" da escola Cobra Kai.
A série Cobra Kai, desde o início, quebra com o maniqueísmo simplista das produções roteirizadas por Kamen. Ainda que o Mr. Kim Sun-Young (C.S. Lee) e o próprio Terry Silver continuem fazendo papéis de vilões irremediáveis, figuras como Johnny Lawrence e até mesmo John Kreese são humanizadas e, de certo modo, nobilitadas, cedo ou tarde, em suas sagas individuais. Junto a esse processo de "des-maniqueização" da trama concorre outros, tais como o da "desmistificação do mestre" e da relativização do Miyagi-Do como paradigma absoluto da ética marcial correta. A própria inversão, que coloca a escola Cobra Kai no centro da trama (e do seu título), demonstra, desde o início, uma intenção: reconsiderar, em novo contexto de mundo, o lema "strike first, strike hard, no mercy"; agora não mais tão contraditório ao "Karatê é apenas para defesa", repetido ao longo de Karatê Kid pelo Mr. Miyagi.

Um conjunto de cenas e diálogos da última sequência de Cobra Kai ajuda muito a entender a desconstrução do "orientalismo romântico" como motor ético e estético das personagens virtuosas da série. Ao desiludir-se amorosamente, Chozen (Yuji Okumoto) é convidado por Daniel e Amanda Larusso (Courtney Henggeler) para um encontro com uma amiga solteira, Winnie, que, segundo Amanda, combina muito com Chozen por ela gostar de "natureza, equilíbrio" e tudo quanto é "crunchy stuff". Crunchy stuff, traduzido nas legendas como "vibe hippie", representa, em termos levemente pejorativos (neste momento), o tipo de cultura que informava, nos anos 80, a construção do "Oriente" imaginado em Karatê Kid. Ao contrário da expectativa de Amanda, entretanto, Chozen não se interessou minimamente pelas "crunchy stuff" de Winnie. Quando, por exemplo, Winnie menciona o Reiki como uma terapia de origem japonesa, Chozen responde que há um velho ditado em Okinawa a respeito disso: "Reiki é uma grande besteira"...
A atitude negativa frente ao "orientalismo romantico" não é, contudo, absoluta. Chozen reluta, mas diante da insistência de Winnie, ela faz para ele uma leitura de Tarô, na qual ele acaba por compreender seu futuro amoroso junto a Kim Da-Eun (Alicia Hannah-Kim), a mestra coreana da linhagem dos Cobra Kai. No limite, a série admite espaço positivo para o "orientalismo romântico" na trama, porém, ele se torna bem distante de ser o que move as personagens à ação ou o que as ensina as maneiras "corretas" de sentir e de pensar.

No lugar ético central da trama e do comportamento dos personagens o que se destaca é uma releitura do "sonho americano" em perspectiva semelhante à de outra obra famosa dirigida por John Avildsen oito anos antes de ele lançar o primeiro filme da trilogia de Karatê Kid: Rocky, um lutador (United Artists, 1976). A última sequência de Cobra Kai é explícita nas referências ao filme estrelado por Silvester Stalone no papel de um boxeador pobre, descendente de italianos dos suburbano de Filadélfia, que, de repente, ganha a sua chance de enfrentar Apolo Creed, o campeão mundial dos pesos pesados. Derrotar Creed seria mais que imporvável, mas, se conseguisse, Rocky transformaria completamente a sua vida. Johnny Lawrence se torna o novo Rocky Balboa e é exatamente citando o filme de 1976 que Daniel o motiva a encarar a sua luta contra Feng Xiao (Lewis Tan), o sensei hongkongonês do time dos Iron Dragons, franco favorito na disputa.
Os grandes campeões do Sekai Taikai, torneio em torno do qual a trama da 6ª temporada inteira se organiza, são três personagens cujas tragetórias de vida (representadas ao longo das várias temporadas da série) lembram a saga de superação de Rocky: Miguel Diaz (Xolo Madridueña), Tory Nichols (Peyton Roi List) e o próprio Johnny Lawrence. Miguel, ao longo da sua tragetória, teve que superar as dificuldades próprias de uma família de imigrantes latinos nos EUA; enfrentou um longo e delicado tratamento médico, cujo resultado mais provável era ele ter ficado para sempre paraplégico; conviveu com a rejeição do pai e com o seu passado criminoso etc. Tory passou a vida cuidando sozinha de sua mãe doente, fazendo todo tipo de bico para sobreviver e procurando espaço em um mundo que parecia sempre hostil a ela. Lawrence, por sua vez, era o enteado de um milionário que, após a morte da sua mãe, o largou na vida sem recursos e tendo que se virar para sobreviver. Não tendo superado a relação problemática com o seu Sensei, John Kreese, tornou-se um adulto de baixa auto-estima e praticamente um condenado à mediocridade.
Em adição aos três campeões do torneio, poderíamos acrescentar também Robby Keene (Tanner Buchanan), filho de Lawrence em seu primeiro e mal fadado casamento, que, de garoto problema no início da série, torna-se um dos grandes herois ao final, cavando o seu futuro de atleta profissional ao lado de Tory Nichols, seu par romântico.

É em relação a personagens como este que o lema "strike first, strike hard, no mercy" é ressignificado no final da série, quando Lawrence reabre o Dojo Cobra Kai e decide manter a velha frase pintada na parede. Ao invés de apagá-la, ele prefere assumi-la e explicá-la a partir de sua experiência de vida. Diante de sua turma lotada (após seu sucesso no torneio mundial), ele explica o lema do Dojo. "Strike first e strike hard "não exigem grande ressignificação, pois indicam, positivamente, tomar iniciativa e agir com entusiasmo (força) para realizar o que se deseja e buscar um "lugar ao sol". Porém, no mercy exige esforço interpretativo um pouco maior. Ele resume o ensinamento dizendo que, na vida, não dá para ser sempre o "bonzinho", pois quem é "bonzinho demais" acaba se tornando vítima fácil de injustiças. "Sem compaixão" deixa de significar sinal verde para o exercício da crueldade e passa a ser interpretado como assumir uma atitude implacável contra a injustiça e a opressão.
Mas todo o sucesso de Cobra Kai e de sua ética ressignificada não seria completo não viesse com ele o próprio reconhecimento do Dojô de Miyagi, representado por Daniel Larusso, da sua validade. É interessante, neste sentido, que a aceitação dos métodos de Cobra Kai por Daniel San é forte ao ponto de ele próprio patrocinar a recompra do Dojô para Lawrence e de utilizar o seu típico "mindset "ao orientar o amigo na luta contra Feng Xiao. Por outro lado, a aceitação não abala a sua confiança no método do Miyagi-Dô, sobretudo, após ele solucionar o mistério do suposto crime cometido por seu mestre no passado e descobrir que, na verdade, a ação do sensei teria sido de auto-defesa e de combate a uma injustiça. A apoteose o método do Miyagi-Dô vem com a recusa de Samantha Larusso (Mary Mouser) em lutar contra Tory no Sekai Taikai, abrindo caminho para a vitória de Tory contra Zara Malik (Rayna Vallandingham) na final, atitude potencialmente controvertida, que, no entanto, é bem aceita pelo pai após uma visão que ele tem de seu velho mestre explicando que o objetivo do Karatê é "não precisar de lutar".

A necessidade de lutar é para aqueles se encontram em situações de conflito que os oprimem a ponto de exigirem atitudes agressivas, duras e implacáveis, como Lawrence, Tory, Muiguel, Robby e tantos outros. A situação, uma vez que resolvidos ou não os conflitos (no caso, o conflito entre Samantha e Tory), indica o caminho mais ético, seja ele mais duro ou mais suave, mais agressivo ou mais receptivo... Este tipo de reflexão que poderia descambar para o "orientalismo romântico" (sobretudo, a partir do conceito de "balance", "equilíbrio", constantemente repetido na série) não está descartado, mas fica para as personagens em situação de desempenharem gestos compassivos e magnânimes, como o auxílio financeiro de Daniel para Lawrence reabrir o seu Dojô ou Samantha desistir da chance de conquistar o Sekai Taikai em benefício da amiga.
Respondendo à questão apontada no título deste ensaio, sim, Cobra Kai, comparativamente à saga de Karatê Kid, é um testemunho eloquente do declínio do "orientalismo romântico", do qual a geração dos anos 80 (a minha) pode sentir muita nostalgia. Porém, esse declínio não significa a apoteose da barbárie e da violência do Cobra Kai do Mestre Kim ou dos senseis Kreese e Silver. Antes, significa a aceitação da convivência entre modelos éticos complexos e situacionais no universo da cultura marcial contemporânea e global, considerando, inclusive, o legado cultural asiático de modo menos infantil e absolutizado.







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