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Cobra Kai, Miyagi-Do e a Idealização do Mestre

Atualizado: 8 de mai.

Por: Guilherme Amaral Luz


Ontem, dia 18/07/2024, estreiou na Netflix a sexta e última temporada de Cobra Kai, série que revisita a trilogia Karatê Kid, dos anos 1980, e que fez um estrondoso sucesso. Aqui no Brasil, algumas horas foram suficientes para colocar a sexta temporada série no topo da audiência da plataforma, repetindo o padrão das temporadas anteriores.

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Tamanho sucesso não é fruto da acaso. Cobra Kai é exemplar como produto altamente vendável da indústria do entretenimento. Seu público focal é a juventude, meninos e meninas espalhado(a)s pelo Globo com acesso à plataforma.

Para atraí-lo, combina ação e adrenalina com dramas típicos da adolescência, adicionando pitadas de sonho americano, clichês orientalistas e um leve bom-humor. Seu enredo é simples e relativamente previsível, porém, comporta alguns mistérios capazes de manter a atenção do espectador para o seu desvelamento de episódio para episódio.

Diferentemente das temporadas anteriores, a atual apela bem menos à nostalgia dos fãs de Karate Kid, cuja fonte de referêcias ou parece ter se esgotado ou já não é mais o seu grande chamariz. A memória dos fãs acaba por ser mobilizada de outras maneiras, sobretudo, por meio da expectativa sempre no ar de serem reestabelecidas as velhas rivalidades entre os personagens que foram se conciliando ao longo das tramas das temporadas anteriores.

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Apesar de todos os seus aspectos de produção midiática para consumo em massa, com os seus clichês e apelos de superfície, mais uma vez, é possível "ler", em Cobra Kai, uma narrativa paralela, quase subterrânea às suas obviedades, cujas mensagens problematizam questões bastante vivas, presentes nas comunidades de artistas marciais (sobretudo, de artes marciais asiáticas) na contemporaneidade global. No caso da sexta temporada, parece-me que a questão chave, neste sentido, é a da idealização do(s) mestre(s) e de seu(s) legado(s).

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Na origem dessa questão, está um fato muito aguardado pelos entusiastas da série: a parceria entre Johnny Lawrence e Daniel LaRusso com a incorporação do Dojo Eagle Fang Karatê (de Lawrence) ao "tradicional" Miyagi-Do (de LaRusso). O primeiro conflito da temporada dá-se em torno de tal incorporação. A expectativa de Johnny quanto a uma fusão dos Dojo - mantendo claras as referências ao seu "bizarro" símbolo - é frustrada pela defesa enfática de Chozen e de LaRusso do legado do Mestre Miyagi, cujo nome, segundo eles, não deveria ser associado a uma estética tão heterodoxa quanto aquela representada pela Eagle Fang.

Lawrence se compromete a abrir mão da sua escola em favor da referência e dos métodos da Miyagi-Do. A incorporação de uma águia à logo da escola é sutilizada, mantendo-se central o famoso bonsai com o sol atrás.

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A motivação de Lawrence para adotar o método e as referências do Miyagi-Do é por ele revelada em diálogo com Daniel e Chozen, no qual afirma que a Eagle Fang não passava de um arremedo de Cobra Kai e do legado de seu antigo Sensei: o "vilão" John Kreese, assim como dos seus atigos comparsas, como Terry Silver.

A decisão reabre o velho maniqueísmo entre Kreese e Miyagi, cujo antagonismo aparece desde Karate Kid, a hora da verdade (1984). Ou, ainda mais explicitamente, o maniqueísmo entre Miyagi, o mestre sábio e virtuoso de Daniel LaRusso, e Kim Sun-Young, o impiedoso e exigente mestre sul-coreano de Kreese e Silver, cujo "caminho do punho" estaria na base dos ensinamentos de Cobra Kai.

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A aparição de Kim Sun-Young na série é uma referência nostálgica à trilogia de Karate Kid, especialmente, ao filme Karate Kid III, quando ele é revelado, por Terry Silver, o grande mestre por trás do famoso "strike first, strike hard, no mercy" de John Kreese. Em Cobra Kai VI, entretanto, há outra referência contida na referência: a caracterização do Mr. Kim emula claramente a figura do Mr. Pai Mei, um ícone da mitologia das artes marciais chinesas associadas ao lendário Mosteiro "Shaolin do Sul". Pai Mei é figurinha marcada dos clássicos filmes da Kung Fu Fever dos anos 70 e, mais recentemente, interpretado por Gordon Liu, exibiu os seus rigorosos e mortais métodos de treinamento na segunda parte do filme Kill Bill (2004), de Quentin Tarantino.

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Pai Mei, no imaginário do Kung Fu, representa o vilão traidor que se juntou a dinastia invasora, os Qing, contra os rebeldes leais aos Ming, verdadeiros chineses Han, supostamente apoiados pelos monges de Shaolin. Sua fama de vilão, entretanto, não impediu que várias escolas de Kung Fu de Fujian (Fukien) continuassem (tal como continuam até hoje) reivindicando o legado de Pai Mei como idealizador de seus estilos; escolas que refutam e tratam como difamatórias as histórias que o associam à traição da resistência Ming contra os Manchu da Dinastia Qing.

Daí, não se pode deixar escapar um detalhe presente na temporada VI de Cobra Kai. Em determinado momento, quando John Kreese vai pedir autorização do Mr. Kim para participar do torneio Sekai Taikai como treinador da equipe coreana do Cobra Kai, o mestre condiciona sua autorização a uma prova: Kreese deveria se embrenhar numa caverna a fim de recuperar uma adaga (eunjangdo), que o Mestre Kim teria utilizado para derrotar sozinho vários guerreiros japoneses invasores da Coréia entre os anos de 1910 e 1945. Na caverna, Kreese descobre uma lição subliminar na prova estabelecida pelo seu mestre: mais importante do que o prêmio (no caso, a adaga), é eliminar os obstáculos que o separam dele (no caso, uma víbora, cuja picada despertou em Kreese uma viagem alucinógena envolvendo a sua grande fraquesa: o amor que nutre pelo seu discípulo predileto, Johnny Lawrence).

Surge aqui um conjunto de ambivalências: ao contrário da fama de traidor de Pai Mei, Mestre Kim se mostra como um herói na resistência contra o invasor estrangeiro, realizando a proeza de derrotar muitos inimigos com uma única e pequenina adaga decorativa. Seu heroísmo, todavia, não o impede de se mostrar aparentemente cruel e violento, excluindo de seu ensinamento qualquer tipo de sentimento de afeto ou amor pelos adversários, tidos como obstáculos para a conquista dos seus objetivos.

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Voltando ao conflito existente no novo Myiagi-Do, a competição interna para a formação da equipe e de seus capitães no Sekai Taikai coloca à prova a amizade entre os jovens, despertando desejos egoístas, métodos espúrios e trapaceiros de vitória, inveja, conflitos... Convertidos em obstáculos uns para os objetivos dos outros, os personagens demonstram as tensões entre si e os seus próprios conflitos internos de consciência. A este tipo de movimento não ficam imunes os próprios Sensei Lawrence e LaRusso, cuja aliança vai sendo constantemente testada pelas profundas diferenças e os ciúmes que se apresentam entre os dois.

Neste contexto de conflito, um desconcertante achado mexe com a cabeça e com os sentimentos de Daniel LaRusso: em um alçapão aparentemente desconhecido por ele ao longo dos 40 anos de sua frequência na antiga casa de Miyagi, Daniel encontra uma caixa e, dentro dela, segredos que o fazem questionar o real caráter de seu mestre. Ao que parece, Mestre Miyagi teria se envolvido em roubos e agressões nos EUA em sua juventude, quando frequentava ambientes suburbanos de uma academia de Boxe. O misterioso episódio teria feito Myiagi inclusive mudar de identidade, a fim de se esconder da justiça.

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Miyagi sempre exibiu com orgulho sua medalha de heroísmo, recebida durante a Segunda Guerra mundial. A "caixa de Pandora" descoberta por Daniel lhe revela o lado sombrio escondido pelo mestre. Por traz do herói, parece haver um vilão; da mesma forma que, por trás da vilania do Mr. Kim, parece haver algo de um passado heróico. Mais uma vez, a série quebra com o maniqueísmo e busca humanizar os mestres, trazendo-os para perto da realidade, com os seus defeitos e com as suas qualidades, com as suas ambivalências, seus segredos e suas fragilidades.

Para LaRusso, a quebra da imagem absoluta de herói, que marca a sua memória afetiva de Miyagi, o torna ainda mais obsecado pela pureza do método "superior" do Miyagi-Do e o coloca desconfortável com o fato de Lawrence não o seguir da maneira que ele considera certa e adequada. Para Daniel, Lawrence apenas segue os ensinamentos do Dojo na aparência, mantendo-se, na prática, o mesmo professor dos tempos de Cobra Kai e Eagle Fang. Sem conseguir lidar muito bem com a quebra da imagem de perfeição de Myiagi, LaRusso recorre às suas próprias concepções de correção e, sem notar, toma algumas atitudes egoístas, injustas e inadequadas, além de tentar submeter Johnny ao seu poder (incluindo aí a nova condição de Lawrence como seu empregado na loja de veículos).

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Em meio a tantos conflitos, envolvendo a imagem de antigos mestres, emerge o drama próprio de Tory Nichols, emocionalmente abalada pela morte de sua mãe doente. A perda funciona como gatilho a despertar o que estava na base do seu estilo de luta enquanto era aluna de Kreese no Cobra Kai: a canalização da raiva para a obtenção da vitória sobre o(a) adversário(a). Este processo acaba a levando de volta às sombras de seu antigo professor, após abandonar a equipe de Lawrence e LaRusso, na qual se sentia preterida e marginalizada. Desdobramentos, contudo, desse drama de Tory e o próprio percurso particular que a fizeram retornar ao Cobra Kai são deixados mais para frente, nos episódios da temporada que ficaram para ser lançados apenas em novembro.

É interessante, por hora, notar uma coisa: Tory sente-se peixe fora d'água na "perfeição" ideal do Myiagi-Do. Nota-se na personagem um desconforto com a aparência de "elevação" em um contexto no qual ela reconhece injustiças, predileções e atitudes em relação às quais mantém uma postura de desconfiança. Há algo nela de "bad girl" que a torna atraída pela atitude mais agressiva e beligerante de Kreese e da escola do Mr. Kim. Quando o espírito de competição chega ao clímax e o equilíbrio do Dojo de LaRusso (e Lawrence...) é posto à prova, a sua escolha é clara: romper com a hipocrisia (ou a aparência de hipocrisia), e assumir de forma peremptória uma postura que não aceita o lugar de "perdedor" e que se dispõe a deixar evidente que irá lutar com todas as suas forças para eliminar os obstáculos que a separam de seu prêmio...

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Devon Lee é como o inverso simétrico de Tory, nesse sentido. Obsecada por um lugar na equipe do Miyagi-Do no torneio, pelo respeito de seus mestres e colegas e, ao mesmo tempo, insegura quanto à concorrência de Kenny, ela arma uma trapaça contra o colega, o vence num desafio decisivo e ainda permite que o colega pense que o verdadeiro culpado pelo ocorrido tenha sido Anthony, o filho mais novo de Daniel LaRusso, velho rival de Kenny. Lee, ao menos até aqui, é exemplo explícito de hipocrisia na temporada, ainda que ela própria perceba isso e demonstre um drama de consciência pelo que fez. Tanto Lee quanto Tory deixam-se levar pelo desejo de poder e de reconhecimento que a competição promete aos vencedores, entretanto, Tory torna explícita a sua escolha, enquanto a de Lee esconde-se nos subterrâneos, assim como a caixa de Miyagi.

Mas, depois dessa longa descrição/interpretação dos primeiros episódios da sexta temporada de Cobra Kai, cheia de "spoils" (só agora anunciados...), cabe-nos voltar à questão da cultura marcial contemporânea problematizada pela série: a idealização do mestre e de seu legado. É comum que, na busca de um ethos elevado e superior, escolas, estilos e academias de artes marciais construam seus mitos de origem e, em meio a eles, situem os prodígios de seus "grandes mestres". Orgulhar-se dos mestres ancestrais do estilo é quase uma obrigação moral dos bons discípulos, gerando sentimento de pertença à comunidade e de participação no seu legado. Isso impede que sejam criadas imagens humanizadas de tais figuras, elas próprias pessoas capazes de atitudes mesquinhas, egoístas, injustas e mesmo criminosas a depender das circunstâncias. A questão aqui é a seguinte: a idealização (desumanização) dos mestres gera algum mal ou é uma prática inocente sem impacto na formação do praticante? Ela é algo positivo ou negativo? O que ela ensina?

Aponto alguns dos riscos implicados na idealização do mestre:

(1) Escamotear, por traz da imagem de excelência ética e pureza de ensinamentos, práticas de poder que não coadunam com tais princípios, de modo camuflado e até inconsciente;

(2) Criar imagens distorcidas de si mesmo e do(s) outro(s), assumindo uma postura vaidosa de isolacionismo e desprezo fantasiada de preservação da tradição ou da pureza de algo que precisa se manter intocável;

(3) Tomar as lições e ensinamentos dos professores como verdades absolutas e inquestionáveis, em relação às quais não cabe crítica, nem discernimento, sendo qualquer pensamento dissonante sinal de infidelidade ou traição;

(4) Enxergar de modo hipertrofiado as nossas próprias imperfeições ou defeitos, atraindo sentimentos de culpa e de frustração na busca por honrar um modelo de excelência inalcançável e muito superior a nós mesmos, desistindo do processo ou abraçando a hipocrisia;

(5) Desenvolver um respeito servil e temeroso aos nossos mestres e professores ao invés de um sentimento amoroso capaz de reconhecer, no outro, um ser humano com o qual é possível e necessário ter empatia e compreensão.

Cobra Kai VI nos coloca de frente com esta questão, muitas vezes tratada como tabu em escolas tradicionais de artes marciais asiáticas. É uma questão antiga, mas muito longe de ser resolvida, e seus efeitos são claros como a luz do dia para todos que já tiveram a experiência de conviver, com certa criticidade de olhar, por algum tempo, em comunidades marciais.

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