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A Vida no Tatame

Quando pensamos em treinamento marcial, percebemos que ele envolve muito mais do que a prática corporal ou a repetição de movimentos. O aprendizado precisa se transformar em rotina, e a rotina, em hábito — até que tudo se integre como um verdadeiro estilo de vida.

As artes marciais tradicionais, como o kung fu, desenvolvem aspectos fundamentais: disciplina, honra, paciência, entre outros. Com o tempo, esses princípios se incorporam ao dia a dia e influenciam profundamente a forma como nos relacionamos com o mundo ao nosso redor.

O praticante aprende a observar melhor seus limites, a respeitar o tempo das coisas e a agir com firmeza e respeito, tanto dentro quanto fora do ambiente de treino. Essa consciência não surge de forma imediata, mas é cultivada dia após dia, por meio da repetição, da escuta e da convivência.

Ao perceber seus próprios limites, o praticante desenvolve humildade e paciência — compreende que evoluir exige tempo e que forçar o processo pode levar ao desequilíbrio. Com o tempo, também aprende a manter a postura e a intenção mesmo diante das adversidades.

O momento no tatame deve ser vivido com plena atenção, com os sentidos voltados para o aprendizado e para o contato com o próprio "eu". Estar presente é escutar o corpo, compreender seus sinais, respeitar seus limites e reconhecer o que ele tem a dizer. Essa escuta interna é essencial para que o treino seja não apenas físico, mas também um exercício de autoconhecimento.

Nessa caminhada, é fundamental aprender tanto a estar presente quanto a ser presente — e compreender as sutis diferenças entre esses dois estados ao longo do processo de treinamento. Estar presente é direcionar a atenção para o agora, percebendo o corpo, a respiração e o ambiente ao redor. Já ser presente envolve um comprometimento mais profundo: é agir com intenção, autenticidade e consciência em cada movimento, assumindo responsabilidade por si mesmo e pelo que se constrói na jornada. No treino, isso se traduz em qualidade, escuta e entrega verdadeira — elementos que transformam a prática marcial em um caminho de evolução contínua, tanto física quanto interior.

Kung fu — termo tradicionalmente associado às artes marciais — foi transmitido pelos antigos como sinônimo de ‘trabalho árduo’, podendo ser aplicado a qualquer área da vida. Mais do que apenas luta, kung fu representa o domínio conquistado com esforço, dedicação e presença. Tudo o que é feito com maestria, foco e intenção pode ser considerado kung fu.

Estar presente e ser presente em cada ação, em cada escolha, é o que transforma o simples fazer em uma prática significativa. Claro, aprender algo novo sempre traz desafios, mas isso não impede o surgimento do conhecimento. Pelo contrário — é justamente através da dificuldade que crescemos. O caminho pode ser exigente, mas é nesse processo que a verdadeira essência do kung fu se revela.

Quando estamos treinando, vivenciamos dois processos fundamentais: o treinamento solo e o treinamento em grupo. Ninguém treina só.

O treinamento solo é silencioso e introspectivo — é nele que cultivamos nossas habilidades, aprofundamos a técnica e desenvolvemos a arte marcial que habita em nós. É um momento de conexão com o próprio corpo, com a mente e com a essência do que estamos praticando.

Longe das distrações externas, somos convidados a olhar para dentro, a reconhecer nossas limitações e a trabalhar com paciência e constância para superá-las. Cada movimento, repetido inúmeras vezes, não é apenas uma execução técnica, mas um exercício de presença, disciplina e autoescuta.

Já o treinamento em grupo é o espaço da troca, da escuta e da convivência. É com nossos “irmãos” de treino que aprendemos a cooperar, a respeitar diferentes ritmos e a crescer juntos. Ouvimos os ensinamentos dos mestres, ajudamos os mais novos a se encontrarem no caminho e nos inspiramos na dedicação dos mais experientes.

Essa convivência constrói um ambiente de apoio mútuo, onde o progresso de um se torna parte do progresso de todos. No coletivo, aprendemos a lidar com a diversidade de estilos, personalidades e energias, ampliando nossa capacidade de adaptação e empatia. Em grupo, aprendemos que ninguém caminha sozinho — todos fazem parte de algo maior, e esse sentimento de unidade é uma das maiores riquezas do caminho marcial.

É comum que nem sempre estejamos animados para treinar. O cansaço do dia a dia, as preocupações ou até mesmo um sentimento de desânimo podem nos acompanhar até a porta da academia. No entanto, ao cruzá-la, é preciso lembrar do compromisso que assumimos conosco: treinar, treinar e treinar.

A verdadeira disciplina se revela justamente nos dias difíceis — quando a vontade é pequena, mas ainda assim escolhemos estar presentes. Treinar mesmo sem motivação é um ato de força interior, é colocar o corpo em movimento para que a mente o acompanhe. Nessas horas, não se trata de desempenho ou intensidade, mas de constância e superação silenciosa.

É nesse gesto simples, de continuar apesar do peso, que reside o crescimento verdadeiro. Afinal, o treino transforma não só quando estamos bem, mas principalmente quando insistimos mesmo sem forças aparentes. E, muitas vezes, é nesses dias que saímos mais fortes do que entramos.

No tatame, nem sempre fazemos o que queremos — mas sempre fazemos o que é necessário. E para isso, é preciso foco, disciplina e a coragem de se colocar à disposição do caminho, mesmo nos dias difíceis.

São nesses momentos que mais crescemos, porque é fácil agir quando tudo está favorável. O verdadeiro aprendizado acontece quando superamos a resistência interna, quando calamos a mente que quer desistir e escolhemos permanecer. É assim que a prática se transforma em algo maior — em um compromisso com quem estamos nos tornando.

 
 
 

3 comentários

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Alexsandra
23 de jun.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

O esporte,traz ao ser humano o autoconhecimento às artes marcias assim como o Kong Fu está além da luta, quem o pratica leva para vida,para os atos diários consigo e com os outros

Parabéns pelo texto

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Luiz Davi
23 de jun.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Um texto excepcional

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Sifu Alexsandro
21 de jun.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Sensacional o texto.

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