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O resgate histórico da experiência japonesa no pós-segunda-guerra a partir de Hajime no Ippo

Atualizado: 8 de mai.

Por Pablo Lacerda Bueno


Hajime no Ippo não é um anime muito comentado no Brasil. Embora seja um dos títulos mais extensos na história do mangá no Japão com mais de 1400 capítulos e 35 anos (ainda) em publicação, sua adaptação em anime não tem constância e publicidade similar às franquias blockbusters. Ainda assim, ele tem duas peculiaridades enquanto uma obra que por tanto tempo permanece bem aceita pela população japonesa. A primeira, é ser um mangá/anime de uma atividade esportiva. A segunda foi apostar em um esporte consideravelmente menos popular no Japão: o boxe.

Ele é um shōnen clássico, que adultera o aspecto da luta com seus apelos visuais, exageros técnicos e comportamentos super-humanos (como um boxeador enfrentando um urso). Por outro lado, também aborda técnicas clássicas e específicas do boxe, as possíveis lesões resultantes da exposição ao esporte e, como boa parte da produção audiovisual japonesa, enaltece a cultura japonesa. Uma parte disso fica bem nítida quando se conta a história do treinador de Makunouchi (protagonista da obra) e dono da homônima academia de box, Kamogawa.

A história que se passa nos tempos atuais é teletransportada para um Japão em reconstrução após a Segunda Guerra Mundial, em que os cidadãos de Tokyo são expostos especialmente a moradia e alimentação inadequadas. Neste contexto, Kamogawa e Nekota, amigo e rival pugilista, se deparam com um militar americano que desafia japoneses no ringue e sempre vence. Além disso, eles desenvolvem um affair com uma mesma japonesa, orgulhosa de sua nacionalidade.

O autor deixa bem clara sua valorização pelo japonês a despeito dos poucos americanos que se encontram no país. Após a rendição dos japoneses, a ocupação militar americana marcou a vida dos japoneses e sua história. Não para menos, é um general americano o boxeador que permanece invicto no ringue.

O autor Morikawa George não se preocupou em seguir seu padrão de criar o ambiente dos confrontos que organiza, em que a vida particular de cada adversário é explorada. Cada luta apresenta os anseios, angústias e motivações de ambos os boxeadores, seja eles protagonista/coadjuvante ou adversário (mesmo os mais antipáticos, desrespeitosos e trapaceiros), a ponto de gerar um conflito interno no leitor/espectador sobre quem ele espera que seja vitorioso no embate. O general Anderson, por outro lado, é apresentado diretamente, sem maiores contextualizações, como um indivíduo pouco preocupado em respeitar a condição do povo japonês recém-derrotado na guerra.

Após uma vitória, o general solicita que seus subalternos arremessem ao chão "roupas, chocolates, chicletes e pães" para a população pobre, o que leva vários deles a se sentirem não apenas desrespeitados, mas também humilhados. Ele também persegue a japonesa (que inclusive se nega a pegar qualquer "presente" do chão por orgulho), argumentando que "a única forma de se entreter nesse país [Japão] é bater em homens e transar com mulheres". Salva pela dupla de pugilistas japoneses, a garota enfrenta problemas de saúde, logo concluindo que ela era residente de Hiroshima e que sua morte pela exposição à radioatividade era questão de tempo.

O exército japonês apresentou significativa resistência no final da Segunda Guerra Mundial, quando ficaram conhecidos os pilotos denominados kamikaze. Pela grande perda humana e financeira advinda desta dos ataques diretos dos aviões japoneses, o Japão acabou sendo alvejado por dois ataques de nível atômico, bombas que foram detonadas em Hiroshima e Nagasaki. Além das milhares de vidas, o país assumiu sua derrota na guerra e passava agora, como um perdedor, a vivenciar as imposições do bloco vencedor.

É também um período de mudanças, não muito distante de outra grande alteração da realidade japonesa. A partir do bakumatsu, o fim da administração samurai e o retorno do poder à corte, o Japão passou por um intenso processo de modernização, passando pela mudança de hábitos, vestimentas e até da paisagem urbana. Ao sair da Segunda Guerra Mundial, o país passa pela interferência americana e mergulha de cabeça no modelo capitalista, tornando-se competitivo no cenário internacional. Até que a população possa desfrutar do retorno financeiro, ela enfrenta várias adversidades, o que o autor de Hajime no Ippo representa, com a coragem e vitalidade dos personagens que vivem neste momento, um aspecto nacionalista frequentemente encontrado em animes, inclusive citando a famosa expressão yamato daimashii.

A mensagem mais clara é da determinação, tanto enquanto povo em tempos de reconstrução quanto dos boxeadores que querem se destacar neste universo. Ainda que seja uma estratégia para se valorizar os japoneses (incluindo-se aqui a mensagem exportada ao mundo), também demonstra a grande força de vontade dos esportistas que tanto treinam e se preparam em prol de continuar na carreira de boxeador. Dando caráter de destaque, referenciam-se os países que não o tem como prática comum: vários dos personagens se dividem entre os treinos e suas atividades laborais.

Hajime no Ippo também oferece um outro detalhe interessante: a aproximação de lutadores pelo combate. De um lado, por mais que o general Anderson tenha sido desonesto e desreipeitoso, ele também é uma referência de um box que não só o Japão precisaria se espelhar para melhorar (de maneira geral, considerando aqui o contexto dado na história da obra), mas o nível que a dupla Kamogawa e Nekota buscava atingir (de forma específico). Igualmente, o lutador americano que não mais treinava adequadamente e também não se importava de utilizar truques sujos durante suas partidas acaba por voltar a treinar e lutar de forma justa quando reconhece o valor dos dois lutadores japoneses e se sente desafiado a lutar box novamente como há algum tempo aparentemente não fazia.

A primeira luta, com Nekota, é vencida com um golpe ilegal por parte de Anderson, o que leva Kamogawa a competir pelo amigo, pela japonesa que ama e pelo próprio orgulho japonês. E, como esperado, Kamogawa vence após um intenso treinamento, sendo reconhecido pelos auxiliares do inconsciente Anderson.Kamogawa, porém, abre mão da relação com sua amada para que ela cuide de Nekota, que já apresentava sequelas pela exposição ao boxe.

Kamogawa jovem, após lutar contra o general Anderson
Kamogawa jovem, após lutar contra o general Anderson


Este pequeno arco do pós-guerra no anime foi dedicado aos dois falecidos dubladores originais da dupla japonesa boxeadora que foi evidenciada neste arco. Embora dure apenas quatro capítulos na terceira temporada do anime Hajime no Ippo - Rising, deixa vários gatilhos para discussões históricas e culturais. Estas discussões são frequentemente encontradas em animes, mesmo naqueles que não são jidaigeki (obra baseada em alguma época), algo que pretendo explorar (separado por títulos) nas próximas publicações.

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