A (mega)confusão de referências históricas em "Bastard!!"
- Pablo Lacerda Bueno

- 26 de mai.
- 6 min de leitura
O manga "BASTARD!! -暗黒の破壊神" (Bastard!! The Dark God of Destruction) teve seu primeiro one-shot (um capítulo piloto, de apresentação) em 1887. Começou a ser publicado em 1988 na Weekly Shonen Jump (como um shōnen, voltado para o público masculino adolescente) e, a partir de 2000, pela Ultra Jump (como um seinen, dedicado aos leitores masculinos adultos). Como apenas um OVA (Original Video Animation) de 6 capítulos fora lançado entre 1992 e 1993, época de pouco acesso aos animes no Brasil se comparado com os dias atuais, a obra traduzida como "Bastard!! Heavy Metal, Dark Fantasy" passava quase despercebida aos brasileiros, mesmo sendo de grande sucesso no Japão e internacionalmente.
Em 2022, porém, a Netflix lançou um ONA (Original Net Animation) com a segunda temporada em 2023, totalizando 39 episódios. O anime foi classificado como adulto (18+), mantendo a característica seinen de seu manga mais atual. Carregado de violência e nudez, ele possui várias referências que, muitas vezes, ficam confusas de explicar.
O autor Hagiwara Kazushi sempre deixou claro seu interesse por bandas de Heavy Metal e pela franquia Dungeons & Dragons (um TTRPG, jogo de interpretação de papéis em tabuleiro). Não para menos, o ambiente da obra em questão é voltado à Idade Média, carregado de características do clássico RPG, com muitos nomes de personagens e locais fazem referência às bandas que o autor escutava. Ainda assim, ele não abandona aspectos históricos de sua nação, o que gera uma miscelânea e anacronismo históricos.
Antes de mais nada, a história é totalmente fictícia, cujo ambiente medieval nada significa passado, mas sim um futuro pós-apocalíptico resultante da escuridão que destruiu o mundo atual, um poder criado pelo próprio sentimento negativo da humanidade. Após 400 anos, a humanidade de restabeleceu tal qual se estuda a Europa no começo da transição da Idade Média para a Idade Moderna. São observados camponeses, soldados, castelos, pequenas cidades, espadas, armaduras e escudos, mesmo que não tão bem caracterizados quanto nos registros históricos.
Obviamente, não havia uma preocupação do autor em refletir um universo histórico de maneira realista. Mesmo ambientado em aspectos do passado europeu, a isso se somam, dragões, golens, orcs (também traduzido como orques, monstros humanoides comumente retratados como vilões violentos) e poderosos feiticeiros ou magos. Sacerdotes são representados com armaduras, em contraponto com suas vestimentas pouco providas de proteção (haja vista que não travavam combates físicos diretamente).
Em meio a isso, a caracterização de alguns personagens guerreiros arremete mais ao universo da Europa da Idade Antiga do que apropriadamente a Idade Média, como um Minotauro. Para boa parte dos soldados, as armaduras dos guerreiros (protegendo partes específicas) são consideravelmente menos protetoras que as medievais (envoltas em todo o corpo e cabeça) e suas espadas são igualmente menores, lembrando mais as manuseadas na Antiguidade (com apenas uma mão ao invés de duas, pela diferença de peso).
As mulheres geralmente são sensualizadas. Mesmo as da realeza contam com vestimentas muito distantes do pudor que reinava no ambiente europeu. Guerreiras até se destacam na liderança do cenário militar, o que não ocorria no passado patriarcal, salvo raras exceções.
Nem tudo fica descaracterizado, pois vez ou outra se encontram representações mais coerentes. É possível observar um cavaleiro com sua armadura bem próxima às de característica medieval, inclusive montado à cavalo. Alguns sacerdotes são mais bem representados do ponto de vista histórico, sem armaduras e com vestimentas mais representativas.
O castelo de Meta-llicana muito se aproxima do passado histórico, envolto em água, com acesso apenas por uma ponte, protegido por um grande portão e soldados a postos: uma fortaleza. Os soldados de elite contam com armaduras completas como as medievais. Ainda assim, utilizam lanças ao invés de espadas ainda que não estivessem montados, um recurso típico da cavalaria.

A organização espacial também é confusa. Arredores de aspecto campestre e medieval são mesclados com cidades medievais e modernas em que a pavimentação ladrilhada parece ser mais avançada que este tempo. Une-se isso ao grande espaço urbano atual pós-apocalíptico entre cada reino, outro choque temporal que a obra fictícia se permite.


É nisso que também reside uma "mistureba" do autor, como a representação de um padre que é artista marcial. Na tradução da Netflix, ele se apresenta como ambos e também como um monge guerreiro da arte marcial "Santo Punho de Aço". Sua representação visual é bem europeia, mas sua fala lembra a de um monge budista.
Aí temos algumas curiosidades históricas. Padres medievais europeus também poderiam ser monges e também havia alguma tradição ocidental que os envolvesse em artes marciais. Entre as opções, esgrima e corpo a corpo como a luta livre e a defesa pessoal faziam parte das artes marciais desta região.
Durante a Idade Média, estes clérigos tinham por finalidade aprender artes marciais em prol da proteção de seu espaço religioso, como as igrejas, em relação a ataques e/ou assaltos. Outros entendiam a introdução ao combate como uma prática de cunho disciplinar e que lhes favorecia o crescimento pessoal e espiritual. Já no ambiente asiático, são famosos os monges guerreiros, como os sōhei no Japão, contando com armas como a naginata (que se aproxima de uma lança curvada) e o "Santo Punho de Aço" pode ser uma referência ao estilo de kung fu tradicional do "Punho Shaolin".

Outra "mistureba" foi a inclusão de duas figuras japonesas, ninja e samurai, neste espaço deveras europeu. Ambos são retratados com espadas japonesas. Os ninja são mais estereotipados e os samurai mais descaracterizados.
Os ninjas são sempre retratados com armaduras nesta obra, algo que não era obrigatório a tal espião. Seu líder Gara, em contra partida, não permanece mascarado como seus subalternos o fazem. Alguns ninja na cultura popular são representados sem indumentárias escuras e máscaras, como é o caso do fictício Jiraiya.

Já o caso do samurai fica bem mais confuso, como o "feiticeiro shōgun" Yngwie. Sua espada e vestes lembram um cavaleiro europeu, mas seu título é de um samurai. Embora shōgun arremeta ao maior cargo na hierarquia destes guerreiros, ele se declara "servo do Grande Rei", algo contraditório se considerar que o shōgun detinha o poder de fato e a corte japonesa possuía um imperador.
Por outro lado, ele se separa dos que denomina plebeus e reprime a população, contando inclusive com violência. Em vários momentos históricos o samurai teve este comportamento registrado na história japonesa. E para gerar uma última confusão, ele combate os samurai da obra, já que Yngwie mesmo não é um deles.
Os samurai, embora portadores de espadas japonesas, utilizam partes de armaduras europeias, enquanto suas roupas são muito distantes dos tempos históricos aqui discutidos. Um deles, por exemplo, utiliza um modelo de calça que se popularizou durante a Segunda Guerra Mundial pelo racionamento de tecidos (mais simples e menos decorativa), acompanhado de um cinto de couro com fivela em metal que se tornou muito comum após a Revolução Industrial, já que era possível fabricá-lo em massa.

Eles também se postam seguidores do bushidō, mas várias decisões e comportamentos são incompatíveis com a etiqueta de um samurai. A própria exposição disto pelos samurai na obra é algo que necessita de revisão, já que o termo se popularizou em um século que não contava com a existência do samurai. Em suma, reconhece-se como samurai na obra alguém que porta uma espada japonesa (não especificado assim no anime) e segue um bushidō que também não é bem determinado.
O anime também conta com o pano de fundo em que a população se revolta devido a fome resultante de uma alteração climática. Isso arremete a uma condição muito comum na antiguidade e modernidade, não distante de situações contemporâneas, inclusive sendo uma das razões contribuintes ao início da Revolução Francesa. A população pobre reage de forma agressiva pelo aumento de impostos, episódio bastante corriqueiro na história humana. tais pessoas não contam com armaduras, algo condizente com suas condições econômica e social.
"Bastard!!" conta com muitas referências. Em sua liberdade artística, algumas delas favorecem referências históricas enquanto outras estimulam anacronismos e estereótipos. Entre a "mistureba" apresentada por esta obra, é possível abrir um bom leque de discussões sobre a história, desde que respeitando a faixa etária do público com quem se discutirá (18+).
Os nomes de personagens e locais seguiram a obra da Netflix e pode ser diferentes de outras traduções encontradas em outras mídias e em termos encontrados na internet.





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