Estranhos familiares - Tradições marciais no mundo global
- Guilherme Amaral Luz
- 16 de set. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 8 de mai.
por Guilherme Amaral Luz
Doutor em História Cultural pela UNICAMP
Professor Titular do Instituto de História da UFU
Coordenador do EDUCAM
No vídeo abaixo, entre 2:01:46 e 2:03:25, o mestre Gil Rodrigues, um dos mais importantes representantes do estilo Chen tradicional de Taijiquan no Brasil, faz um relato muito interessante sobre uma experiência que teve na Vila Chen (Chenjiagou), na China, em uma de suas viagens para aprendizagem e treinamento com o seu mestre. Transcrevemos a sua fala:
"Tem uma outra coisa que acho importante falar que é: eu tinha um hábito na aldeia que era caminhar todos os dias de manhã. Todos os dias de manhã eu fazia a minha primeira hora de treino, tinha um intervalo e eu gostava de caminhar pelas vielas para ver as pessoas, para sentir o ar... pra conhecer as pessoas... pra enxergar um pouco a aldeia. E era muito comum as pessoas sempre me olharem. E não é um olhar assim... distraído; não, é um olhar que você vai passando e a pessoa vai te olhando assim... Isso não tem absolutamente nenhum constrangimento porque tem uma simplicidade nisso e... uma ingenuidade... Primeiro, porque eu sou de outro país e, segundo, eu tô andando por lugares que estrangeiro não anda; não anda quando vai pra lá. Mas eu tinha essa curiosidade de conhecer mais esses locais e de alguma maneira que eu não sei... é... como explicar para vocês com outras palavras, mas, de alguma maneira, eu via no olhar dessas pessoas um certo acolhimento e também um certo reconhecimento. É como se aquelas pessoas tivessem me olhando, me acolhendo enquanto estrangeiro e me olhando e me acolhendo e me reconhecendo também enquanto estrangeiro que veio de algum lugar (que não é a China) para aprender sobre a cultura daquele local, sobre a tradição daquele local. Então isso para mim foi muito... é... revelador [pausa]. Vamos para outra pergunta..."
Ao ouvir este precioso testemunho, bastante típico das melhores narrativas de viagem, lembrei-me de um excepcional texto de Michel de Certeau, em A Escrita da História, no qual ele analisa os discursos de Jean de Léry sobre os Tupinambás do Rio de Janeiro no século XVI. O ponto de intersecção entre Gil Rodrigues, nas vielas menos turísticas da Chenjiagou contemporânea, e Léry, nas margens da Fortaleza de Villegagnon, está no modo de percepção da alteridade. Nos dois casos, a tentativa de encontrar familiaridade na estranheza do outro, em certos momentos, confessa-se impotente, os sentidos são colocados em suspenso e as palavras começam a faltar. No caso de Léry, ela dá espaços aos urros e sons indiscerníveis, barulhos sem sentido, que o Huguenote se esforça, sem muito sucesso, em por na escrita musical. Certeau demonstra que a escrita é a ferramenta que procura reduzir o outro da "cultura letrada" ao universo semântico da sua linguagem e, quando ela falha, quando ela não consegue achar as palavras e as sentenças adequadas, é ali propriamente que o outro aparece com toda a sua irredutível singularidade.
O caso de Gil Rodrigues é um pouco distinto. Sua narrativa (pouco importa se escrita ou falada/filmada) encontra, no olhar silencioso dos habitantes comuns de Chenjiagou, daqueles sujeitos menos habituados ao trato com os visitantes estrangeiros que para lá se dirigem a fim de conhecer/apreender mais sobre o Taijiquan, um sinal de sua própria condição de "um outro" naquele lugar. No centro de treinamento, junto ao seu mestre e aos seus colegas (chineses ou não), essa estranheza não tinha lugar. O ambiente da família marcial reduz as distâncias sociais e culturais entre pessoas de diversas procedências numa comunidade singular, na qual um conjunto de elementos simbólicos e rituais encarregam-se de construir sentimentos de pertença.
"Não há constrangimento" no olhar do outro, diz o mestre; porém, a necessidade em si de afirmar a ausência de constrangimento denota um presumível ou eventual desconforto (de quem olha e/ou daquele que é observado). Nem tudo na aldeia Chen é comunidade marcial. Nem todas as práticas e tradições locais são compartilháveis ou compartilhadas com os praticantes estrangeiros de Taijiquan, nem poderiam ser. A começar pela sazonalidade da presença dos estrangeiros no local, que contrasta com a permanência contínua dos moradores, passando pelas formas de significar e resignificar o próprio Taijiquan no cotidiano, há muitas diferenças nos modos de vida e de leitura da realidade entre habitantes comuns de Chenjiagou e a "comunidade global" que se reúne nas escolas e academias dos mestres da Vila.
O olhar dos moradores revela ao mestre Gil Rodrigues que ele não é um deles. Porém, isso não quer dizer, necessariamente, que não seja bem-vindo, que não possa ser recebido, que não possa ser reconhecido como alguém que veio, de boa fé, aprender algo da sua cultura para levar consigo para casa. Não há qualquer garantia que os moradores de Chenjiagou assim pensassem enquanto o obervavam, mas é assim que o mestre Gil Rodrigues refletiu sobre a sua condição de estrangeiro, de "outro", de alteridade, e inferiu uma ética muito delicada de tratamento da tradição. Mestre Gil talvez tenha tomado a consciência de que ser discípulo de um mestre da Vila e carregar, com isso, um nome de família, não o torna automaticamente um "igual" participante daquela comunidade. Naquele caminhar, ele teve a "revelação" de que a comunidade internacional do Taijiquan não é uma extensão da Vila Chen para o resto do mundo. De que sua legitimidade de estar ali, aprendendo sobre o Taijiquan, implica respeitar os limites da sua (re)apropriação.
Recentemente, um dos trabalhos mundialmente mais relevantes para a consideração do significado das comunidades marciais contemporâneas é o de Veronika Partikova em seus estudos sobre a "família marcial" e aquilo que ela nomeia como "metáforas coletivistas". Em uma síntese de suas próprias conclusões, a autora afirma que:
Associações de kung fu operam por cidades, culturas e continentes e podem formar laços entre um grupo diverso de pessoas de diferentes idades, etnicidades e profissões.
São estruturadas historicamente ao longo de linhagens (largamente masculinas) nas quais contatos intergeracionais e considerações de praticantes do passado e do presente são imperativos.
Quando vistos como "famílias", essas associações, grupos e clãs são pertinentes para o olhar de sociólogos como sentidos de pertencimento ao largo do tempo e do espaço.
Metáforas conceituais da família kung fu podem nos ajudar a compreender a organização e a lógica da prática das artes marciais chinesas, mas também devem nos ajudar a questionar as noções comuns de família em si mesmas.
Do ponto de vista da sua prática márcial, Gil Rodrigues representa de modo muito exemplar uma típica vivência em comunidade marcial tradicional (nos termos assinalados acima por Partikova) e para constatar isso basta assistir ao vídeo completo que incorporamos a este texto. Seus passeios pelas vielas de Chenjiagou revelam, entretanto, que esta experiência não corresponde, em absoluto, a"tornar-se nativo". Mostra que as comunidades marciais globais, expressas na metáfora familiar do kung fu, são espaços de vivência distintos daquelas comunidades locais de "origem". Disso não decorre, necessariamente, uma desconexão entre as tradições "originais" e as suas novas configurações internacionais. Pelo contrário, entre os praticantes mais sensíveis, menos dogmáticos e mais atentos ao universo do outro, como é o caso de Gil Rodrigues, disso decorre uma responsabilidade delicada e dedicada de trazer para casa algo que, sendo útil para nós, não seja agressivo ao olhar atento (e talvez menos ingênuo do que possa ter parecido ao mestre) daquelas pessoas que cuidam da sua história como cuidam do próprio ar que respiram, ar que apenas os estrangeiros mais sensíveis costumam sentir em suas visitas a Chenjiagou ou a qualquer outro "resort" de artes marciais tradicionais.
Chenjiagou já não é uma simples aldeia rural da China há muito tempo. O Taijiquan para além de uma prática social e cultural relevante para a região também se tornou uma atividade economicamente rentável e mesmo instrumento de soft power. A Vila atrai turistas marciais do mundo todo, que criam laços comunitários em escala planetária, mas também, recorrentemente, subvertem a cultura local e a agridem com as suas éticas consumistas, egocentradas e espetaculosas. Entusiastas do Taijiquan de todo o mundo têm encontrado em Chenjiagou um espaço de formação capaz de ampliar redes de conexão interculturais. Por outro lado, é necessária uma atitude como a do mestre Gil Rodrigues em suas aventuras peripatéticas, de tal modo que o remédio para a falta de conexão característica do individualismo contemporâneo (capitalista e global) não retorne como um veneno para as sociedades que fornecem a si mesmas como "matéria prima".








Excelente texto!