Da hemeroteca da BN à memória viva das AMC no Brasil
- Guilherme Amaral Luz
- 30 de ago. de 2024
- 16 min de leitura
Atualizado: 8 de mai.
Da hemeroteca da BN à memória viva das AMC no Brasil
O “caso” do mestre pioneiro Lee Way Yin
Autores:
Marcelo Vidaurre Arcanjo
Professor de Kung-Fu e Tai-Chi-Chuan em Niterói (RJ). Mestre em Sociologia e Doutor em Antropologia Cultural pela UFRJ.
Rodrigo Wolff Apolloni
Professor de Kung-Fu e Tai-Chi-Chuan do Centro Ásia, em Curitiba. Doutor em Sociologia pela UFPR, com estágio de pós-doutoramento em História pela UFCG.
Introdução - uma investigação, uma surpresa, uma instigação (por Rodrigo W. Apolloni)
Em primeiro lugar, é importante alertar o leitor para o fato de que este ensaio foi escrito a quatro mãos, que trabalharam de forma sequencial. Isso faz com que sua estrutura seja um pouco esquisita, a de um “texto emoldurado por outro texto”. O conjunto da obra nasceu de uma investigação e de uma posterior instigação feita dentro do grupo “Memória das Artes Marciais Chinesas no Brasil”, do Facebook.
A investigação inicial/instigação, assim como parte da “moldura”, que você está lendo agora nesta Introdução (a outra parte dela é a conclusão), são minhas.
A resposta à instigação é de Marcelo Vidaurre Archanjo - um pesquisador que conhece muito as Artes Marciais Chinesas (AMC) no Brasil. E que realiza investigações em arquivos e hemerotecas como ninguém.
Antes de passar a palavra ao Marcelo, que é, de fato, o grande contribuinte do ensaio, vale explicar o contexto que deu origem ao texto.
Sua história começa em 05 de agosto de 2024, quando eu pesquisava antigas notícias na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional para a produção de um livro. O tema da pesquisa era a fundação do Hospital de Clínicas da UFPR. Como, porém, me enquadro entre os “malucos do Kung-Fu”, aproveitei a oportunidade para pesquisar também sobre... Kung-Fu! Não havia como não fazer isso diante daquele acervo de tantas décadas, milhares de jornais e milhões de páginas.
Propus um recorte (“Jornais do Paraná, 1960-1969”) e fui brincando com termos que poderiam representar o que conhecemos como “Kung-Fu” antes da entronização da palavra no imaginário brasileiro: “Kung-Fu”, “Kungfu”, “caratê chinês”, “luta chinesa” e até “konfu”. A ideia era verificar a existência de antecedentes prévios àqueles que eu tinha sobre as AMC na minha cidade natal, Curitiba.
Para mim, até então, elas teriam começado na “terra dos pinheirais” com os mestres Makáo (James Gonçalves Junior) e Lee Chung Deh, nas décadas de 1970 e 1980. Para meu encantamento, obtive um retorno, para o termo “konfu”. Uma nota breve, mas reveladora, publicada pelo jornal "Diário do Paraná" no dia 11 de dezembro de 1969. Ela dizia o seguinte:

Contava a nota, em síntese: (1) - que as AMC haviam chegado a Curitiba cerca de oito ou dez anos mais cedo do que, até então, eu pensava; (2) – que a capital paranaense teria sido a segunda do país a contar com uma academia de Kung-Fu (algo que soa como “papo de mestre” e que, por certo, merece outras investigações); e (3) – que o primeiro mestre de Kung-Fu e Tai-Chi na cidade foi uma pessoa chamada Lee Way Yin, sobre a qual eu – que me considerava conhecedor do assunto – nunca havia ouvido falar.
Feliz da vida, levei a descoberta, como postagem, ao Facebook, e recebi comentários preciosos – nada mais, nada menos, do que a identificação e a história do Mestre Lee Way Yin – vindos do Marcelo Archanjo. Conversamos, trocamos ideias e, a partir de um convite do Guilherme Luz, decidimos escrever este artigo.
Quem, ora pois, foi Lee Way Yin? A que categoria de mestre ele pertence? Afinal, houve mestres chineses “abaixo do radar” dos grandes “avatares” das AMC no Brasil? É disso que trata o instigantes texto de Marcelo Vidaurre Archanjo, que você vai ler agora.
1. Chegam os Mestres – “abaixo e acima do radar”
A narrativa usual sobre a história das Artes Marciais Chinesas (AMC) no Brasil é demarcada com a chegada de, principalmente, três imigrantes chineses originários da região de Guangdong (Cantão) nos anos de 1959, 1960 e 1961. Definidos como “Mestres Pioneiros”, Moy Gin Ying (“Wong Sun Kueng” 1933), Chan Kowk Wai (1936 - 2022) e Chiu Ping Lok (1936 - 2009) são reconhecidos pelos praticantes brasileiros contemporâneos de AMC como os primeiros imigrantes chineses a ensinarem suas artes para brasileiros a partir da década de 1960.
Entretanto, segundo informações de Paulo Silva em uma entrevista para o canal do YouTube “O Que Sei Sobre Tigres e Dragões” a respeito do tema “Ancestralidade e Tradição”**[2], um dos quatro irmãos de Chiu Chi Ling – filhos ***[3] do famoso casal de Mestres de Hung Gar em Hong Kong, Chiu Kow (1895 – 1995) e Siu Ying (1904 – 2002) – que também era Mestre neste estilo de AMC, veio para o Brasil em 1954, tendo se estabelecido em Campinas (SP) e vivido neste município até seu falecimento em 2020, com 101 anos de idade. Era um ativo participante no Clube Social Chinês de São Paulo, mas nunca abriu academia de AMC no Brasil, tendo ensinado apenas para seus filhos no ambiente privado. Se algum brasileiro treinou privadamente com ele é uma informação que não tenho.
* Nascido em 1959 no município de Cabo (PE), começou a praticar karatê em Recife no ano de 1973 e kung-fu em São Paulo no ano de 1978. Mestre de kung-fu nos estilos Pak Hok e Hung Gar. No Hung Gar, Mestre Paulo é representante no Brasil da escola do Mestre Chiu Chi Ling – na Linhagem Hung Gar do Mestre Chiu Kau (1895 – 1995), seu pai.
** Entrevista que reuniu quatro Mestres de AMC da primeira geração de brasileiros praticantes de AMC – apesar de um deles ter nascido em Macau: Marcos Hourneaux, Paulo Silva, Leo Imamura e Dani Hu (nascido em Macau – atualmente é região administrativa especial da China que até 1999 era território português.
*** Não consegui encontrar uma referência exata sobre qual dos filhos de Chiu Kau viveu no Brasil mas, por exclusão acredito que foi Chiu Kam Ching ou Chiu Kim Ching (1919 – 2020); Chiu Kam Feng ou Chiu Kim Fung “William” (x – 2015) viveu em NY, EUA; Chiu Chi Way (1931 – 2023) viveu no Canadá; Chiu Chi Ling (1943) ainda está vivo e vive nos EUA e Chiu Lai Fong (irmã) permaneceu em Hong Kong.
Essa informação nos faz imaginar que outros imigrantes chineses deste período – de período anterior e posterior – também pudessem ser conhecedores de AMC, mas que nunca ensinaram para brasileiros [ou ensinaram de maneira informal.]
Voltando aos dois “Mestres Fundadores”, Chan Kowk Wai e Chiu Ping Lok, que a partir da década de 1960 estabeleceram e viram crescer suas respectivas escolas – Academia Sino-Brasileira e Fei Hok Phai – que de certo modo funcionaram como centros difusores das AMC para todo o Brasil. Ambos nasceram no mesmo vilarejo, a atual cidade de Tai Shan (台山市), localizada no condado de Guangdong (Cantão). No início da década de 1950, mudaram-se com suas famílias para Hong Kong, onde deram continuidade às suas práticas de artes marciais iniciadas em Tai Shan quando eram crianças.
Chegando ao Brasil, inicialmente ensinavam apenas para outros imigrantes chineses no Centro Social Chinês de São Paulo e, a partir de meados da década de 1960, começaram a ensinar suas artes para brasileiros. Durante as décadas de 1970 e 1980, expandiram suas escolas e tiveram participação ativa na organização das AMC no Brasil através do modelo de associações esportivas, alinhados com o objetivo do governo da República Popular da China de transformar as AMC em esporte olímpico.
Centrada principalmente nas personalidades carismáticas de Chan Kowk Wai e Chiu Ping Lok, a versão oficial da história das AMC no Brasil desloca para a sombra diversos outros jovens imigrantes chineses praticantes de artes marciais, com idades aproximadas, que chegaram ao Brasil no mesmo período (entre 1955 e 1965), mas que, por motivos que desconhecemos, não criaram suas próprias escolas para o ensino de artes marciais.
Porém, também existem alguns desses jovens imigrantes que ficaram em uma posição intermediária. Não criaram escolas próprias para o ensino de AMC para brasileiros, mas se vincularam às escolas fundadas por Chan Kowk Wai e por Chiu Ping Lok. Esse é o caso, por exemplo, de Lee Wai Yin (1938 – 2009).
2. Lee Wai Yin (1938 – 2009): uma breve biografia
Assim como Chan Kowk Wai e Chiu Ping Lok, Lee Wai Yin nasceu no vilarejo de Tai Shan, em Janeiro de 1938. Era o filho caçula entre seis irmãos – quatro mulheres e dois homens. Lee Wai Yin e Chiu Ping Lok iniciaram seu treinamento em artes marciais com o mesmo Mestre, Chan Mun. Com esse Mestre eles treinaram um estilo denominado “Hung Tao Choi Mei Gar” (“Estilo Cabeça de Hung e Cauda de Choi”), uma composição de dois estilos bastante difundidos na região de Guangdong: Hung e Choi.
Apesar da informação divulgada em diversos sites e perfis no Facebook e no Instagram pelos praticantes do “Fei Hok Phai” – nome da escola de artes marciais criada por Chiu Ping Lok – de que Lee Wai Yin era irmão consanguíneo de Chiu Ping Lok, Marcos Hourneaux não confirma esta informação. Na supracitada entrevista para o canal YouTube “O Que Sei Sobre Tigres e Dragões”, Hourneaux nos informa que Chiu Ping Lok e Lee Wai Yin eram “irmãos de treino”, uma relação de afinidade desenvolvida desde a infância em sua aldeia natal.
Nascido em Santo André (SP) em 1959, Marcos Hourneaux começou a praticar Kung-Fu com Chiu Ping Lok em 1965, sendo considerado o brasileiro que pratica AMC há mais tempo e que ainda permanece em atividade. A história do desenvolvimento das AMC no Brasil está intimamente vinculada com a história de sua família.
Em 1965, quatro anos após chegar ao Brasil, Chiu Ping Lok bateu à porta da casa de seus pais, em Santo André (SP), oferecendo variados produtos chineses que vendia de porta em porta. Além dos objetos que vendia, Chiu Ping Lok também ofereceu aulas de Yoga, Tai-Chi-Chuan e Kung-Fu. Após demonstrar suas habilidades motoras para os pais de Marcos Hourneaux, eles se interessaram e começaram a praticar as modalidades na sala e na garagem de sua residência.
Na sequência, os irmãos Maria Luiza e Marcos Hourneaux começaram a praticar Kung-Fu. Com o tempo, outros vizinhos se reuniram a essas aulas e o número de praticantes brasileiros foi aumentando. Em 1969, a mãe de Marcos Hourneaux – Nelsida Hourneaux – e Chiu Ping Lok estabeleceram uma sociedade comercial e formalmente iniciaram a primeira academia de Artes Marciais Chinesas no Brasil, localizada na Rua Catequese, 72, em Santo André (SP) – “Academia Tai-Chi de Yoga e Kon-Fu”.
3. Uma segunda versão
A respeito de qual foi a primeira academia de AMC no Brasil, Moy Gin Ying (“Wong Sun Kueng”) nos apresenta uma outra versão. Considerado o primeiro Mestre de AMC a chegar ao Brasil (Outubro de 1959), também nascido na região de Cantão (Guangdong) em 1933, ele nos informa, em entrevista realizada em Outubro de 1997 para o Museu da Imigração do Estado de São Paulo, que trinta dias após chegar ao Brasil, sem o conhecimento da língua e, em suas próprias palavras, com “um dinheirinho, U$35,00. É, não sabe fala o português, não tem um amigo, não tem um pessoa que conhece, não tem família, nada” – inicia aulas de Tai-Chi-Chuan em academia própria.
Mestre Wong também nos informa que não haviam outras escolas de AMC nesta época, que ele foi a primeira pessoa a ensinar AMC em São Paulo, em local próprio na rua Tomás de Lima, no bairro da Liberdade. Perguntado pela entrevistadora se ensinava para brasileiros, Moy Gin Ying responde: “Tem brasileiro também, é tem”. Resposta que nos faz supor que a maioria dos seus alunos fosse composta por imigrantes chineses. Porém, essa entrevista não nos fornece informações detalhadas com relação aos dados da constituição legal de sua academia, apenas nos fazendo supor que nesse primeiro momento as relações comerciais e jurídicas estabelecidas fossem bastante informais.
Continuando com a vida de Lee Wai Yin, informações disponibilizadas nos sites da Associação Central Chiu Ping Lok Fei Hok Phai Brasil e da Academia Kun Lun de Kung-Fu e Cultura Chinesa contam que ele se mudou para Hong Kong em 1955 e chegou ao Brasil no ano de 1960 (mesmo ano que Chan Kowk Wai e um ano antes de Chiu Ping Lok). Walter Lee, filho de Lee Wai Yin, nos contou que seus avós paternos permaneceram na China e os irmãos de seu pai (quatro irmãs e um irmão) também imigraram. Uma irmã foi viver no Canadá e os outros foram para os Estados Unidos da América (uma irmã foi para Boston, outra para New Jersey e a outra irmã e o irmão foram viver em New York).
Existem diversas fotografias de Lee Wai Yin publicadas em perfis de praticantes do Fei Hok Phai no Facebook e no Instagram. Algumas dessas fotografias são do início da década de 1960 – sem informação precisa sobre as datas – junto com diversos outros jovens chineses, no Centro Social Chinês de São Paulo. A informação oficial sobre a abertura deste clube social e esportivo para imigrantes chineses, localizado na rua Conselheiro Furtado no 261, no bairro da Liberdade, São Paulo, diz que foi em 21 de Março de 1950.
Em uma dessas fotos, referida pelo professor Shu Changsheng (Professor Livre Docente do Departamento de Letras Orientais da USP, coordenador do projeto “Biblioteca Virtual de Estudos da Migração Chinesa no Brasil”) como sendo do primeiro encontro do grupo de Dança de Leão do Centro Social Chinês, aparecem dezesseis homens jovens, oito sentados e oito em pé, todos em trajes sociais de paletó e gravata (apenas quatro sem gravata). Dentre esses jovens se encontram Chan Kowk Wai, Chiu Ping Lok, Wu Kiu Chi (não tão jovem como os demais) e Lee Wai Yin (foto 1). Chan Kowk Wai, Chiu Ping Lok e Wu Kiu Chi também aparecem em uma outra fotografia, em trajes para a prática de AMC, e são indicados como sendo os fundadores do Grupo de Dança do Leão.

Existem diversas fotografias deste mesmo período e local nas quais Lee Wai Yin aparece demonstrando posturas de Kung-Fu junto com Chiu Ping Lok, demonstrando movimentos de bastão e facão de Kung-Fu, tocando tambor e participando em demonstrações públicas. Essas fotografias demonstram que ele tinha participação bastante ativa no grupo de artes marciais, dança do Leão e dança do Dragão do Centro Social Chinês.
Em torno do ano de 1963, Lee Wai Yin trabalhava no Centro Social Chinês, local onde conheceu sua futura esposa, que era filha do então Presidente do Clube Social Chinês em São Paulo, conforme informações a mim fornecidas por Walter Lee através de conversa informal no Whatsapp em 24 Agosto 2024.
Em 1969, uma publicação no “Diário do Paraná” de 11 de dezembro (Curitiba, PR) informa que Lee Wai Yin estava abrindo uma academia de “konfu” na capital paranaense (o mesmo ano que Chiu Ping Lok abriu sua academia da rua Catequese 72). Em uma outra publicação do mesmo jornal, conforme informação disponibilizada no perfil do grupo “Memória das Artes Marciais Chinesas no Brasil” por Marcos Hourneaux Filho (“Markinho”), é acrescentada a informação de que as aulas aconteciam não em uma academia própria, e sim na Academia Melbo-Tan de Karatê, sob a direção de Júlio Celso Tomasi, que se localizava na rua Augusto Stellfeld, no Centro de Curitiba.
Durante a década de 1970 – em ano que, nesta pesquisa, não logramos precisar –, Lee Wai Yin foi ainda mais para o sul do país, tendo vivido na cidade de Florianópolis, onde foi proprietário de uma pastelaria além de também dar aulas de AMC. De acordo com as informações de Jair Lima na referida postagem de Rodrigo Wolff Apolloni. Jair Lima é Mestre do Fei Hok Phai, reside em Joinville (SC) e teve contato direto com Lee Way Yin. Em 1995, Jair Lima e Lee Way Yin receberam de Chiu Ping Lok o título de Mestre no Fei Hok Phai. Eles foram os dois primeiros praticantes da escola titulados por Mestre Lope.
Segundo informações diretas de Valdemir Machado (Índio)* em uma conversa recente, no final de década de 1970 Lee Wai Yin tinha uma pequena loja de doces e outras guloseimas em São Paulo, na qual algumas vezes Valdemir passava para conversas informais. Valdemir diz que, nesse período, Lee Wai Yin não estava praticando AMC na escola de Chiu Ping Lok em Santo André.
* Nascido em 1959, Valdemir é praticante do Fei Hok Phai desde 1973, titulado como Mestre do Fei Hok Phai por Chiu Ping Lok em 2005 junto com mais sete antigos praticantes da escola (Cíntia Yan, Mario Kuno Masuno, Benedito de Barros Filho, Guilherme Eduardo Stamato, Valter Tadeu Ribeiro, Aparecido Marrera e Maria Luiza Hourneaux – filha de Nelsida Hourneaux e irmã de Marcos Hourneaux).
Nesses encontros informais, as conversas sempre abordavam a prática de AMC, e Lee Wai Yin sempre orientava Valdemir com relação à correta execução técnica de movimentos de Kung-Fu e de Tai-Chi-Chuan e Valdemir insistia para que Lee Wai Yin retornasse às suas práticas marciais e ao convívio na Academia Tai-Chi em Santo André. Ao escrever sobre essa conversa que tive com Valdemir Machado a respeito de Mestre Lee, me vejo diante da dificuldade em transmitir o brilho nos olhos, a expressão corporal e o tom de voz de Valdemir ao lembrar-se desses momentos.
No final da década de 1980, Lee Wai Yin vivia em São Vicente (SP) e supervisionava a prática do Kung-Fu Fei Hok Phai na Academia Asada, localizada na região central da cidade de São Vicente (SP), na Rua Jacob Emerick, de propriedade dos irmãos Hidenori e Milton Asada, professores de Karatê Shotokan e também praticantes de Fei Hok Phai.
Além de ser um exímio praticante de AMC, Lee Wai Yin também era praticante e divulgador de danças folclóricas chinesas tradicionais – Dança do Leão e Dança do Dragão. Conhecedor dos complexos ritmos presentes nestas danças, executados principalmente com os intrincados toques do tambor chinês e com o acompanhamento do gongo e dos pratos, Lee Wai Yin não somente tocava como também ensinava essas artes para os praticantes de AMC. Ao longo de sua vida, Mestre Lee fez diversas viagens aos Estados Unidos da América e ao Canadá, onde viviam seus irmãos.
4. Uma tragédia
Conforme informado nas edições do jornal “Expresso Popular” de sábado/domingo 19/20 de setembro de 2009 e da segunda-feira, 21 de setembro de 2009, na seção “Plantão Policial”, na sexta-feira, 18 de Setembro de 2009, um mês após o falecimento de Chiu Ping Lok em 22 de agosto de 2009, Lee Wai Yin foi brutalmente assassinado em um assalto. Após realizar uma retirada bancária, enquanto retornava caminhando para sua academia, Mestre Lee foi abordado por dois homens em uma motocicleta que anunciaram o assalto. Lee Wai Yin entrou em luta corporal com um dos assaltantes que estava armado, levou dois tiros no tórax e o assaltante também foi ferido por um disparo, mas conseguiu fugir. Lee Wai Yin foi socorrido, levado para o hospital, mas não resistiu aos ferimentos. No dia seguinte, um dos assaltantes foi preso e afirmou que a dupla havia recebido a informação sobre a retirada do dinheiro realizada por Lee Wai Yin através de funcionário do próprio banco.
O jornal também informava sobre a presença de seus dois filhos – Walter e Wagner Lee - e de sua ex-esposa, Suely, ao velório e enterro. Eles iriam esperar a conclusão das investigações para fazer a cremação dos restos mortais de Lee Wai Yin. Diversos membros da comunidade de imigrantes chineses, brasileiros praticantes de AMC, além de parentes residentes no exterior, compareceram ao seu velório e funeral. Lee Wai Yin tinha 71 anos.
5. Irmãos marciais
Existem muitas fotografias de Lee Wai Yin e Chiu Ping Lok publicadas na Internet. Essas fotos mostram os dois “irmãos”, muito jovens em Hong Kong, no período em que eram recém-chegados ao Brasil, em diversas apresentações de AMC ao longo dos anos, nas reuniões realizadas por praticantes de AMC chineses e brasileiros quando da criação da Federação Paulista de Kung-Fu Wushu (A primeira Federação esportiva de AMC criada no Brasil), em viagens à China para turismo e com delegações de atletas brasileiros para competições. No YouTube podemos encontrar diversos vídeos de Lee Wai Yin em demonstrações de Kung-Fu e Tai-Chi-Chuan. Uma das rotinas de Kung-Fu que ele gostava de apresentar, desde os seus anos iniciais no Brasil, era o movimento da flauta.Valdemir Machado me relatou que Lee Wai Yin demonstrava grande habilidade no manuseio deste “instrumento musical-arma”, causando grande admiração em suas apresentações.
Da mesma geração de Lee Wai Yin, Chiu Ping Lok e Chan Kwok Wai, existiam outros jovens chineses, recém-chegados ao Brasil no início da década de 1960, praticantes de AMC e que aqui viveram suas vidas, trabalhando, constituindo família, socializando com membros da comunidade de imigrantes chineses e com brasileiros, mas que não estabeleceram uma escola própria para ensino de AMC para brasileiros - a exemplo do que fizeram Chan Kowk Wai e Chiu Ping Lok (e que também não fizeram como Lee Wai Yin ao se manter vinculado à escola de seu “Irmão”).
Nas entrevistas de Marcos Hourneaux disponíveis no YouTube, surgem os nomes de alguns desses jovens – Jimmy Wong, Ho Ping, “Koke”* – que faziam parte do grupo inicial coordenado por Chiu Ping Lok desde o Centro Social Chinês até pelo menos o final de década de 1970 e início da década de 1980.
* Jimmy Wong era irmão da primeira esposa e mãe dos filhos de Chiu Ping Lok e tanto Marcos Hourneaux quanto Valdemir Machado se referem a ele lembrando de suas habilidades em luta, e por seus ensinamentos neste domínio. Ho Ping era proprietário de uma livraria localizada no bairro da Liberdade em São Paulo, que oferecia uma boa seção em artes marciais para os aficcionados no assunto. Marcos Hourneaux declara que Ho Ping era um exímio praticante de Hung Ga e que aprendeu muito com ele.
Valdemir Machado em entrevista por mim realizada (Agosto de 2024) mas ainda não publicada, também faz referência à esse grupo de jovens chineses, às suas habilidades marciais e às suas contribuições na transmissão das técnicas marciais aos jovens brasileiros que na época se iniciavam na prática das AMC. Entretanto, seus nomes, suas trajetórias e suas contribuições às AMC no Brasil não são plenamente lembrados.
Conclusão (por Rodrigo W. Apolloni)
Deixemos, então, o “conteúdo” para voltar à “moldura” do ensaio. Depois de conhecer a vida de Lee Way Yin – doravante, pioneiro do Kung-Fu e do Tai-Chi-Chuan na cidade de Curitiba –, chegamos a algumas reflexões.
A primeira delas, muito pessoal (é Rodrigo quem escreve) e verdadeiramente truística, é de que, para avançar na pesquisa das AMC, é preciso ir além do próprio terreiro, do próprio estilo. Isto costuma revelar dados surpreendentes.
A segunda, manifestada por Marcelo Archanjo já antes da escrita deste ensaio, na conversa que o inspirou, diz respeito à necessidade imperiosa de percebermos aqueles mestres chineses que ficaram “abaixo do radar” da História das AMC no Brasil.
Por sua trajetória, Lee Way Yin não é, evidentemente, um deles, mas também não se situa entre os “avatares canônicos” do campo – os mestres Chan Kowk Wai, Chiu Ping Lok e Moy Gin Ying.
Fato é que, situados ainda mais “à sombra” da História, há muitos outros mestres chineses que também inscreveram seu DNA nas AMC no Brasil. Se fossem investigados, esses professores fugidios provavelmente corroborariam muitas das histórias, das cosmogonias, do chamado “Kung-Fu Heterodoxo” brasileiro, muitas vezes apodado, rudemente, de “Pirata”.
A terceira conclusão diz respeito à pesquisa das AMC nas hemerotecas, que se revelou fascinante e desafiadora. Fascinante pela necessidade de buscar o tema, nas décadas-chave de 1960 e 1970, usando termos anteriores à consagração do termo Kung-Fu (como, por exemplo, “konfu”); e desafiadora pela percepção de que, a partir da primeira década dos anos 1970, com a chegada do chamado “Kung-Fu Crazy”, a palavra “Kung-Fu” passou a inundar os jornais por conta do cinema. Ela, então, aparece literalmente milhares de vezes, o que, como mínimo, torna a pesquisa muito maçante.
Uma quarta e última conclusão diz respeito mais a uma segunda publicação minha sobre pioneiros das AMC no Paraná, dedicada ao Tai-Chi ensinado, na Curitiba do início dos anos 1990, pelo teatrólogo Wilson do Rio Apa, em postagem realizada em 13 de agosto de 2025 em https://www.facebook.com/groups/594438348049873, do que à publicação que inspirou este ensaio: a relação entre a “pesquisa das origens” e a legitimidade dos mestres/estilos de Kung-Fu no Brasil.
Por incrível que pareça, a revelação de dados arqueológicos sobre as AMC, em especial, quando os pioneiros são não chineses, é capaz de suscitar disputas renhidas acerca da validade dos conhecimentos, o que, minimamente, sinaliza a existência de atitudes fundamentalistas nesse campo – a despeito de toda a sua “tropicalização” ao longo das últimas décadas.
Duas informações que recebi após a publicação do texto através de Markinho Hourneaux (Mestre de AMC e filho de Marcos Hourneaux). Em conversa com Walter Lee, filho de Mestre Lee, Markinho obteve a informação de que Lee Wai Yin chegou ao Brasil no ano de 1963. A segunda informação é a de que, quando viveu em Florianópolis, Mestre Lee possuia uma pastelaria e praticava AMC apenas em sua residência (se ensinou para alguém de modo privado é uma informação que não possuo).
A entrevista com o Mestre Valdemir Machado ao qual faço referência no texto, esta publicada no YouTube em https://youtu.be/KJk8dsdVgyU?si=TzQSSBAGRWQfgO3q